sábado, 17 de novembro de 2012

Capa de plástico.



O barulho da chuva desviou a minha atenção mais uma vez, tem sido assim nas últimas vinte e quatro horas, em que tem chovido copiosamente como se as forças que nos regem estivessem empenhadas para o alerta do que realmente comanda os nossos destinos, a natureza é ímpar a relembrar-nos a nossa humilde condição humana.
Enfeitiçada pelas rajadas de vento que fustigam grossas gotas de água de encontro à minha janela, aproximei-me e colei o nariz à vidraça, em breves minutos o riacho apaziguado por uma breve aberta e uma nesga de sol, volta a correr apressado quase a toda a largura da rua, gosto de olhar estes pequenos rios, um gosto que me vem dos tempos de criança, recordo que enfiada numas galochas pretas e de capa contra intempéries, uma capa feita de plástico transparente comprado no Grémio da vila e que a minha tia costurou minuciosamente, para que assim pudesse brincar à chuva sem me molhar, desbravava horizontes em dias como o de hoje. Nessas alturas era pescador enfrentando a loucura do oceano, pescava grandes baleias e golfinhos, depois da pescaria regressava a casa, afogueada, para me aninhar na velha chaminé onde as labaredas me acariciavam as mãos geladas, e a minha tia me trazia uma caneca de leite quentinho. Hoje tantos anos passados a força da chuva e do vento ainda tem sobre mim efeito calmante, consigo assim regredir no tempo e na saudade.
Perdida nestes pensamentos continuei de nariz colado à vidraça e só me dei conta dela quando passou frente á minha casa.
Uma mulher lutava desesperadamente com uma das mãos tentando assim que o guarda-chuva não se desfizesse com a força do vento e da chuva, com a outra arrastava atrás de si um carrinho de compras, senti um arrepio ao olhar aquele corpo franzino envergando uma capa de plástico que esvoaçava em todos as direcções deixando-a completamente alagada da cintura para baixo, senti que aquela mulher estava tão sozinha naquele momento, reparei que nos pés trazia uns velhos ténis também eles ensopados, os cabelos escorriam-lhe pela cara encobrindo a sua idade, que não consegui decifrar, o quadro que tinha na minha frente pareceu-me surrealista, como é que alguém se aventura a sair de casa com um tempo destes, quais as suas necessidades, senti um aperto no coração e muita pena, como que adivinhando a minha pena, a mulher olhou em direcção da minha janela e sorriu, para logo seguir caminho rua abaixo.
Eu refeita da aparição no meio do temporal, retornei para junto do fogão onde o meu jantar fervilhava, antes de me embrenhar no meu conforto, ainda tive tempo para pensar na capa de plástico azul que a mulher levava sobre o corpo, tão diferente da minha capa de plástico transparente, e com tanto amor costurada.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Carta não sei a quem...



Se eu morresse agora, às cinco da madrugada de um dia sem data, depois de mais uma noite sem dormir.
Se eu morresse nesta hora, alguém sentiria a minha falta, choraria a minha morte, alguém se lembraria do meu sorriso ou da minha cara quando estou zangada.
Se eu morresse agora diriam que também fui mãe, também amei e julguei odiar. Alguém pesaria na balança todo o bem que lhe fiz, em prol de algum mal, teria saudades dos passeios que não fizemos nas tarde de primavera, das horas calmas a ver televisão que nunca aconteceram, alguém iria levar-me flores, mesmo sabendo que nunca mas deu, em vida.
Se eu morresse nesta hora em que chove copiosamente lá fora será que alguém acordaria sobressaltado, alguém se lamentaria pelas palavras e pelos gestos que deixou para depois, ou será que; sou tão insignificante que o meu corpo apodreceria, aqui mesmo, neste lugar, onde descarrego todas as minhas emoções com a força das palavras no computador. E um dia, quando por acaso encontrassem o meu esqueleto enegrecido, pusessem um olhar condoído, baixassem a cabeça e simplesmente dissessem:
- A coitada morreu mas pelo menos o gato fez-lhe companhia!