O barulho da chuva desviou a minha atenção mais uma vez, tem
sido assim nas últimas vinte e quatro horas, em que tem chovido copiosamente
como se as forças que nos regem estivessem empenhadas para o alerta do que realmente
comanda os nossos destinos, a natureza é ímpar a relembrar-nos a nossa humilde
condição humana.
Enfeitiçada pelas rajadas de vento que fustigam grossas
gotas de água de encontro à minha janela, aproximei-me e colei o nariz à
vidraça, em breves minutos o riacho apaziguado por uma breve aberta e uma nesga
de sol, volta a correr apressado quase a toda a largura da rua, gosto de olhar
estes pequenos rios, um gosto que me vem dos tempos de criança, recordo que
enfiada numas galochas pretas e de capa contra intempéries, uma capa feita de plástico
transparente comprado no Grémio da vila e que a minha tia costurou
minuciosamente, para que assim pudesse brincar à chuva sem me molhar,
desbravava horizontes em dias como o de hoje. Nessas alturas era pescador enfrentando
a loucura do oceano, pescava grandes baleias e golfinhos, depois da pescaria
regressava a casa, afogueada, para me aninhar na velha chaminé onde as
labaredas me acariciavam as mãos geladas, e a minha tia me trazia uma caneca de
leite quentinho. Hoje tantos anos passados a força da chuva e do vento ainda
tem sobre mim efeito calmante, consigo assim regredir no tempo e na saudade.
Perdida nestes pensamentos continuei de nariz colado à
vidraça e só me dei conta dela quando passou frente á minha casa.
Uma mulher lutava desesperadamente com uma das mãos tentando
assim que o guarda-chuva não se desfizesse com a força do vento e da chuva, com
a outra arrastava atrás de si um carrinho de compras, senti um arrepio ao olhar
aquele corpo franzino envergando uma capa de plástico que esvoaçava em todos as
direcções deixando-a completamente alagada da cintura para baixo, senti que
aquela mulher estava tão sozinha naquele momento, reparei que nos pés trazia
uns velhos ténis também eles ensopados, os cabelos escorriam-lhe pela cara
encobrindo a sua idade, que não consegui decifrar, o quadro que tinha na minha
frente pareceu-me surrealista, como é que alguém se aventura a sair de casa com
um tempo destes, quais as suas necessidades, senti um aperto no coração e muita
pena, como que adivinhando a minha pena, a mulher olhou em direcção da minha
janela e sorriu, para logo seguir caminho rua abaixo.
Eu refeita da aparição no meio do temporal, retornei para
junto do fogão onde o meu jantar fervilhava, antes de me embrenhar no meu
conforto, ainda tive tempo para pensar na capa de plástico azul que a mulher
levava sobre o corpo, tão diferente da minha capa de plástico transparente, e
com tanto amor costurada.