Sabes há quanto tempo me
afastei de mim, há quanto tempo não me olho no espelho, não visto uma roupa
bonita só pelo prazer de me mimar, sabes há quanto tempo não penso no futuro,
futuro, o que esteve sempre no meu horizonte, vivia o hoje com olho no futuro,
a convivência contigo anulou esse olhar.
Parece mentira como quem ama
tem a capacidade de se anular, mete para trás das costas os mais recônditos sonhos,
tudo porque tenta a todo o custo agradar ao outro, quer que esteja ali sem
sobressaltos. Tolos tal como eu quem assim pensa, não passa de tolo.
O verdadeiro amor não anula
motivações, incentiva, o verdadeiro amor detecta por mais pequena que seja a
ruga de insatisfação, o verdadeiro amor quer que o outro brilhe, mesmo que
ofusque as suas ambições.
Sabes há quanto tempo não se
afagam as mãos, não se transmite a força necessária para que lutem, por mim por
ti, pelos outros. Sabes por ventura há quanto tempo não esboçam um sorriso com vontade,
há quanto tempo choram todo o amor que os anula, sempre que abres a boca para acusar
de nada e tudo, sabes há quanto tempo não olhas nos olhos e adivinhas receios.
Eu sei, por vezes não ajudam,
caiem no descalabro do diz que disse incentivado pela obstinação de
salvaguardar pelo menos a dignidade, como se dignidade servisse de muito quando
a vontade falta, quando a custo de tanto ouvir que não valemos nada, passamos a
nada valer, quando nos dizem não prestas ou nos chamam nomes só pelo prazer de
humilhar e espezinhar. Quem nunca errou nesta vida que atire a primeira pedra.
Hoje digo-te sem receios
somos violentados no ínfimo do ser, eu e todos aqueles expostos a mentes
doentias, que encontram na violência psíquica, às vezes mais maligna que
bordoadas a satisfação na humilhação de quem está a seu lado.
Portugal é um país com
elevado número de doentes mentais, e doentes mentais não são só aqueles que
assim nasceram, não, esses são em menor número, quase todos reconhecidos pelo
sistema de saúde e controlados, os mais mortais e malignos são os que se escondem
por detrás da fachada de cidadãos comuns e se recusam a aceitar que estão
doentes, para eles os doentes e os maus são os outros, quase sempre os
indefesos que com eles coabitam, por caricato que seja as suas vítimas são
aqueles que mais amam, e que mais os amam, há quase sempre um motivo de revolta
inicial, a doença que chegou sem avisar, o desemprego que tomou de surpresa, a
auto comiseração que desencadeia violência verbal, violência essa que precisa
de um alvo, um alvo fácil e sempre disponível, os filhos, os pais idosos, as
mulheres ou maridos silenciosos e amedrontados.
Sabes há quanto tempo não te
escrevia, sabes que te escrevo sempre quando estou na mó de baixo, sabes por
ventura que pedir ajuda não é vergonha, que vergonha é desfazeres a tua e a
vida de quem te ama como se tivesses nas mãos o direito divino de matar sonhos.
Sabes há quanto tempo não dou
a cara pelos indefesos numa sociedade retrógrada e caduca que apenas se satisfaz
com pequenas ninharias, enquanto o outro definha mesmo a meu lado.
Sabes há quanto tempo me
finjo de cega, fingindo não ver o que se passa na minha rua ou na porta da
frente. Sabes quantos são vítimas de suicídio porque encontram nele a solução
definitiva para se livrarem da pressão psicológica a que estão sujeitos. Sabes quantos
adolescentes e idosos fogem de casa, para nunca mais se saber deles.
Sabes quantas mulheres se prostituem
neste país porque foi a porta de saída para a opressão dentro dos próprios
lares.
Sabes que sempre que te olho
dentro do teu fato e gravata, ou do teu fato de macaco, dentro dos teus
vestidos de seda, tenho pena de ti, porque estás doente e não admites.
Sabes, vivo num país
mentalmente doente e não encontro saída, resta-me pois escrever de toda a merda
que por aqui vai.
Sabes, tu e eu no nosso
comodismo reconfortante fazemos parte dessa mesma merda.
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